27 de janeiro de 2010

INFÂNCIA...a minha, a nossa!


O texto que se segue é uma das páginas do livro "Maria de Moura, a mulher que passou do céu" de minha autoria. O livro está disponível e quem quiser ler é só avisar:

O dia me paralisou hoje: a chuva que respinga na calha da casa me fez lembrar os tempos lá do interior. O galo cantava cedinho – nunca precisávamos de relógio ou despertador. Quando o dia não vinha com os raios do sol que invadiam o quarto da meninada, vinha com os gritos da mamãe: “Acorda bando de infitéticos!”, “Cambada de preguiçosos!”. Nossa casa parecia um Castelo Medieval – papai era a aristocracia; mamãe, o clero e nós, os pobres servos. Puxar o balde do fundo do poço pra encher as bacias, corre-corre para aproveitar as horas de água encanada, matar galinha pra depenar, puxar o pescoço do pato e com cuidado tirar o sangue pra cabidela, encher bujão, lavar carotes para o suco da taberna, quebrar cupuaçu pra retirar a polpa com tesoura, catar acerola pra fazer o refresco, raspar coco, varrer quintal com vassoura de cipó...Nossa rotina era assim: Trabalho forçado. Ainda bem que os dois tiveram um exército de filhos: 13. 8 mulheres e 5 homens.
É impossível estar em Belém, a Cidade das Mangueiras, perceber a chuva repentina que cai torrencialmente e não lembrar do 47. Aquele quintal cheio de criança feliz correndo pra pegar a manga madurinha debaixo da árvore...Eu fecho os olhos e lembro da gente jogando sabão no pátio de casa e escorregando na maior alegria...Ai, Meu Deus, quantas biqueiras não lembram de nós na esquina da “Radisco” ou na praça da Matriz. Moleque correndo com medo de raio e pavor de pedra de corisco. A gente tinha medo das coisas que os mais velhos diziam: “Se cair corisco e menino tiver juntinho, morre grudado!”, “Dia desses no interiorzinho das bandas dali, um raio matou uma família tostada, não restou um vivo pra contar conversa”. Mas o que dava medo mesmo era a chegada do pai dos desobedientes;”Quem te mandou tomar banho de chuva, filho de uma égua?” Era moleque correndo, era criança gritando, era neguinho chorando...De tudo rolava naquelas tardes de chuva no nosso quintal. Mamãe dormia pedindo silêncio e nós corríamos mudos, rolávamos na areia molhada, trepávamos em árvore, gastávamos o restinho de inocência que tínhamos sem precisar ir pra trás da casinha no fundo do terreiro.
Eu sinto inveja de mim quando lembro daquele tempo. Amigos verdadeiros, sorrisos e abraços bem dados, inocência divina de quem nasceu e viveu no interior e foi feliz. Eu me empolgava com a água da vala e escorregava nela feito peixe. Eu caía sem sentir o joelho ralado. Comi manga com sal e pimenta-do-reino. Açaí com melancia. Jaca com leite. E o melhor, eu não tinha dívidas, não sabia o que era engarrafamento, fila em banco, ônibus lotado, assalto à mão armada...Tanta coisa que hoje tirou de mim aquele sorriso largo e gentil, aquela gargalhada de menina feliz...E agora, esta chuva que me paralisa diante da grade da sala e não me deixa ver as crianças lá fora me faz lembrar de um tempo em que eu era feliz.... muito feliz e não sabia.

na imagem: Júniro, eu e a Nazinha. UMA PIADA!

2 comentários:

Anônimo disse...

Mas vcs eram bem feinhos, hein? Cruz credo.

Thaisa disse...

Me deu uma saudade...Mariazinha me chamando de "sua praga, infitética, vai prá tua casa, tu já tá manjada aqui"kkkkkkkkkk