26 de abril de 2010

“Sou eu, minha vó, a Junia! Dá um sorriso pra mim!”.


Estive na casa da tia Madalena, irmã mais nova da mamãe, para fazer uma visita à vovó. Há tempos não via a minha velhinha e fiquei chocada com o que encontrei por lá. Dona Martinha era uma senhora de muitas palavras e muitas andanças, muito risonha, simpática e feliz. Era uma baixinha engraçada dessas de corpinho entroncado, perninhas curtas e um cabelão longo e grisalho de dar inveja. Via com felicidade o dia em que ela chegava de viagem, mamãe chamava e nós íamos recebê-la aos gritos e abraços. Éramos maior que ela e isso causava piada em casa. Chagava avexada, cheia de frutas e novidades da colônia onde morava. Trazia sacos de farinha na cabeça e se gabava que era mulher forte e cheia de vivacidade. Não havia nenhuma moça mais corajosa que ela ali na cidade, gabava-se. Eu gostava da minha vó, era à ela que eu recorria nas surras que levava da mamãe. As duas viviam em pé de guerra porque a nossa vozinha não concordava com o jeitão torto da Maria em educar a gente. Lembro que na minha revolta de adolescente, ela já morava em Santa Luzia e, sempre que eu tinha problemas em casa, corria para o seu colo naquela casinha miúda que só dava para ela e o vovô. Meu avô era um senhor limpo, engraçado e muito garanhão. Galanteador, potoqueiro e viajante, passava dias e dias fora de casa em suas andanças pelo mundo e esquecia a Martinha sozinha na sua solidão de esposa. Vovó era cheia de rancor no peito, reclamava da vida, queria morrer logo, repudiava a idade dos oitenta, dizia que velho depois dos cinquenta era só pra dar trabalho e despesas. Vovô era senhor de idade, mas se sentia um adolescente, dizia que viveria cento e cinquenta anos, que casaria dezenas de vezes depois que a vovó morresse. Mas a morte lhe pregou uma peça e ele, tão vivo, foi atropelado embaixo de uma passarela de pedestre aqui na Almirante Barroso. Sofri muito com a morte do meu velhinho Peter Pan. Fui ao seu enterro numa chuva tremenda e fiquei no cemitério conversando com ele como ele conversava com a televisão. Até hoje penso que a morte do meu avô tenha sido a maior dor que eu já senti até o dia em que vi a vida da minha avó. Chorei em vê o meu avô morto. Assim como chorei em vê a minha avó viva. É o que eu tenho dito sempre, não sei se morrer às vezes é o pior caminho. Vi a minha avozinha ali naquela cama sem qualquer sinal de racionalidade e pedi a Deus que a levasse embora. Sempre quis a Martinha viva, mas acho mesmo que a morte lhe seria o melhor presente. Cheguei à casa da titia e vi a minha amável velha deitada numa cama, atrofiada, aleijada, surda, muda, cega, vegetando. Meu ser humano mais lindo virou uma linda flor e é cheirosa, tem cheiro de talco barla, cheiro de avó, de mãezona, segunda mãe, um amor. Segurei firme as suas mãos intactas sem qualquer movimento, fechadas com os dedinhos encolhidos e falei ao seu ouvido: “Sou eu, minha vó, a Junia! Dá um sorriso pra mim!”. Nenhum sinal. Segurei forte nos seus ombros sustentando as suas costas com o peito: “Me dá um beijo, meu amor, fala comigo!”. Nenhum gesto. “Quem cortou os teus cabelos, minha linda? Poxa vida, eu os achava tão bonitos!”. Nada. “Nunca mais tive tempo pra dizer que te amo, minha querida. Não sou mais a tua neta preferida,né?! Estás com raiva e por isso não queres falar comigo!!”. Nem choro, nem abraço, nem gestos, nem uma palavra. Ela emudeceu e quase parte o meu coração em pedaços. Fiquei ali observando e pensando naquele tempo em que eu a vi andando, brigando e correndo atrás da gente. Era tão engraçado. Suas perninhas curtas e ligeiras tentando nos alcançar sem nenhum sucesso. Minha tia cuida bem dela, faz o que pode, mas eu me entristeci ao vê-la daquele jeito. O que ela deve pensar? Que pecado cometeu pra merecer essa dor tremenda? Qual a sua função na vida? Que vida é essa? Que Deus é esse? Perguntas que, como ela, eu não me atrevo a dar respostas. O tempo, a vida, o destino são dúvidas e incertezas que às vezes nem a morte ou a vida conseguem decifrar. Saí de lá arrasada. Chorei muito aqui em casa. Passei a noite toda sem conseguir pensar em outra coisa que não fosse ela, a minha avó. Ela quis tanto a morte e o destino lhe castigou com a vida. Por que eu já não procuro mais saber. Agora, ali, deitada, sem poder falar ou escutar, talvez ela tenha o tempo que nós precisamos pra pensar na vida e esperar a morte. TE AMO, VÓ. MUITO!

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