29 de março de 2010

GENTE QUE FAZ FALTA: SEU PEDRO MACHADO


Semana Santa chegando e eu estou doida pra pegar a estrada e voltar ao 47. Aqui na capital as tradições religiosas são comemoradas de forma muito tímida e algumas delas já foram inclusive esquecidas. Em santa Luzia, muita coisa também mudou mas o cheiro de milho, a canjica quentinha e o beiju de farinha d’água ainda são servidos à mesa num almoço com a família. Sou daquele tempo em que em dias de quaresma não saiamos pra festa a quarentena servia mesmo para a reflexão pessoal, o crescimento emocional e o melhoramento na lida com a família. Mamãe sempre foi muito religiosa e respeitou as leis da igreja à risca. Fazíamos jejum, não comíamos carne vermelha nos 40 dias em que duravam as comemorações dessa data, peixe era obrigatório, missa era rotina e a benção de joelho ao chão parte de uma encenação que demonstrava respeito aos mais velhos e devoção às leis de Deus.
Era muito cedo ainda quando ela nos acordava as gritos e eu não esqueço daquela manhã nem que os 100 anos me cheguem. “Deus ajuda aquém cedo madruga, minha gente!”. “Acorda molecada, bando de enfitéticos!” . Mamãe gritava antes que o sino batesse para que criássemos coragem para o banho de água fria e depois a visitação à casa dos tios e dos padrinhos. Lembro do cheiro de café com pão doce esquentado no forno na casa do tio Panta. A casa dele era a primeira que visitávamos já que ele era o único parente direto que tínhamos ali no 47. De lá, cada um partia em direção a morada dos padrinhos de batismo para pedir a benção de joelhos. Eu nunca tive vergonha de fazer aquilo porque sempre tive orgulho dos padrinhos que tive: Seu Pedro Terto e dona Iracema. A casa onde os dois moravam ficava quase de frente da nossa e mesmo não entrando lá todo dia, era comum, diariamente, a exigência dos dois em que eu me direcionasse a eles com a mão estendida para ser abençoada. Manhãs e tardes eu vivi passando por ali, naquela rua ainda em piçarra onde ele morava. Era um velhinho lindo e cheiroso. Alegre e feliz. Usava muito o branco e talvez por isso seu sorriso distribuía a paz. Era sempre a mesma cor a calça de linho, a blusa pólo branca, a sandália de couro e seu chapéu característico. Era ele, o pintor mais conhecido da cidade. O nosso Salvador Dali luziense. Meu paizão, meu padrinho.
Minha madrinha era sempre muito carinhosa, não foi de muitos abraços, mas sempre foi de muitos dengos, oferecia o que havia, me convidava pro almoço e me servia suco gelado com biscoito Maria passado na manteiga. Meu padrinho era um homem espetacular. Uma pessoa indescritível. Um ser fora de sério. Um humano púnico e insubstituível. Seu Pedrinho Machado. O Pintor de Sonhos. O Pedim para os mais íntimos. Meu artista preferido. Um ídolo para aquela menininha que ao passar pela rua Magalhães Barata ficava empolgada ao vê-lo desenhando letras nas carrocerias de caminhões. Meu padrinho foi um Picasso de Chapeuzinho simples. Um René Magritte baixinho e ranzinzo. Um Almodovar nos traços e cores. E hoje, um luziense que faz falta! Sem dúvida! Quem não lembra dele com as escadas nos ombros, as latas de tintas ao pé dos degraus que e levavam aos mais altos lugares das fachadas dos prédios em Santa Luzia? Qual de nós conseguiu esquecer os seus traços nas letras garrafais que escrevia em cores fortes e bonitas nas telas e faixas espalhadas nas ruas de santa Luzia? Qual comerciante que antes de conhecer o banner, as luzes de neon não contratou o Pedrinho Machado pra fazer a pintura do nome do seu comércio? Nenhum. Se duvidar, apesar do tempo e da tragédia, muitos muros ainda insistem em resistir a outras pinturas e conservam os seus traços. Seu Pedim, o pintor mais conhecido daquela região, pintou muros e sonhos, letras e artes. Desenhou vidas. Rabiscou memórias e conseguiu gravar nos corações luzienses o seu nome, em cores de canetas que borrachas nem corretivos apagam. Era baixinho e sorridente. Alegre e cheio de prosa. Bem humorado e sempre palhaço. Pai exemplar, marido dedicado, padrinho amável. Contam muitos, as suas brincadeiras de cima da escada com aqueles que passavam zombando da profissão: “Seu Pedim, o senhor pinta como eu pinto?”. “Não, meu filho, eu uso pincel e não brocha!!!”. Faz falta o meu padrinho. O pai da Francisca, minha amiga e mulher do Franço. Faz falta o pintor de sonhos e vidas. Faz falta o homem, o marido e o companheiro. Faz falta o amigo, seus risos e seus abraços. Faz falta o meu segundo pai, nessa e em outras semanas santas que ele não tem passado junto de nós porque sem ele, ir ao 47 nesta semana de vida e morte de Cristo, é menos significante pra mim que fiz, quando menina, da benção em joelhos, uma rotina na minha vida e uma lição de vida. Hoje, não tenho mais o seu abraço, não recebo a sua mão de volta na hora da “bença” e já não fico mais de joelhos obedecendo às tradições religiosas que me foram ensinadas.desde que ele morreu, morreu em mim também um pouco dos meus costumes e um pouco da minha Semana Santa. Sem ele resta a mim boas lembranças de um tempo em que eu fui feliz e abençoada. “Deus te abençoe, cara de boi!”. Meu padrinho, tua frase, teu conselho, tua mão...tudo em ti ainda me guia. E nessa despedida de hoje eu que te digo: “A paz do Senhor esteja contigo!”

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