9 de fevereiro de 2010

Falar, é preciso?


Pode parecer fanatismo pela profissão,mas há dias em que é impossível não escrever algo. Hoje, 17 de março, é um dia perfeito - se o português Saramago me permitisse, é claro, - para iniciar como ele próprio fez em Objectos Quase. “. . .O dia amanhece com uma sensação de sonho degolado...”. É assim que me sinto. O dia bate na porta. O despertador dispara dando o sinal da hora do trabalho - esforço em vão, o biológico foi mais rápido e fez o serviço. A coluna, como sempre, reclama - o sofá está pequeno demais. Lá fora, a sonoridade dos pingos na calçada lembra a vida no interior. Porém, aqui o galo não canta, o sol não transpôs a fresta da janela e o cheiro do café torrado não invadiu a sala. Que penal!Tá muito frio e a chuva parece confirmar a coincidência: assim como eu, a Cidade das Mangueiras amanheceu aos prantos.
Há três dias que não falo, a rouquidão está provocando um desespero minimizador. Estou me sentindo o dublê do Pato Donald. Um Galileu Galilei depois da forca. Uma ré indo em direção da guilhotina. Rouca.Muda. Impotente.
Mais uma noite que passo em claro. O silêncio é perturbador. Fui aos livros, li sobre Ondulatória, os Fenômenos Acústicas, as Cordas Vocais...O som - grave, agudo, forte, fraco. Todos. Até que foi interessante. Deu pra distrair. A falta de barulho me levou ao pânico. Livros, Internet, pesquisa... até que cheguei ao alfabeto dos surdos - mudos. Simulei frases, gestos, mímicas - a mão nesse mundo mudo e tal qual a pontuação no escrito - e nesse silêncio dinâmico, tirei da cabeça a ideia de que sem a voz eu não seria nada. Que bobagem! Ledo engano! E da escuridão eu fiz luz. Bendita rouquidão. Você me fez lembrar da época quando ainda era uma criança sapeca. Era tão engraçado. Mamãe vivia exclamando “Cala essa boca menina!!!”, “Fecha essa matraca!!!” e papai, protetor como ele só, soltava o verbo “ Deixa de lengalenga, a garota só quer soltar ao voz!!!”. Realmente eu falava pelos cotovelos. Naquela altura do campeonato eu nem imaginava o que seria liberdade de expressão, mas já prezava por ela. Na escola, quando a tia prometia castigo por causa das conversas, eu emudecia de vez - mamãe não podia dar conta do meu mau comportamento, era surra na certa e eu morria de medo do cinturão. Maldito esparadrapo de couro, ele me fez calar durante anos.
Ah, meu Deus! Como quis falar, como quis dizer que os sermões da igreja eram sempre os mesmos, dizer que as lições do catecismo eram absurdas, dizer que achava um tédio as aulas que mamãe dava para noivas e padrinhos lá no pátio de casa. Tolice. Lorota. Mas não podia. Ela era beata famosa. Ministra da Eucaristia. Seu sonho era ver o Junior e eu como coroinhas lá no altar da igreja. Mulher religiosa por nascimento, vivia triste pelos cantos depois da perda do único filho que desejava ser padre. Orgulhava-se quando, no mês de março, as três menorzinhas saiam, lindas, vestidas de anjinhos com asas enfeitadas e tudo. Nós suávamos dentro do cetim, o ritual de coroação era sufocante e demorado, porém, sorríamos. Esse era o desejo de mamãe.
Pobre senhora. Treze filhos. Infinito sofrimento. Católica Apostólica Romana, como ela mesma fazia questão de informar, passava suas doutrinas religiosas para os filhos como se fossem hereditárias. Biológicas. Estou certa que ainda hoje guarda mágoas por eu não ter feito a crisma. Dedicada cristã, papai teme que ela passe do céu de tanto que reza.
Eu emudeci durante anos. Hoje compreendo meu erro, meu medo. Mamãe fazia a gente se sentir em plena Idade Média. Eu temia morrer e ir para o “quinto dos infernos”. Emudeci porque, assim como os doze, aprendi a respeitar os mais velhos, a pedir a benção, a orar antes de dormir.
Eu emudeci a infância inteira. A adolescência inteira. Porque me espelhava na figura paterna. Homem grande, grande homem. Negro, perdera a mãe tão cedo, o pai assim tão bruscamente, sofrera de derrame, paralisia, pressão alta. Como sofreu aquele senhor. Seu Feliciano, ele sim tinha precisão de chorar, gritar... No entanto, nunca o fez, preferia permanecer calado. Nunca o vi travando batalhas. Talvez teria sido por isso que tenha passado tranqüilo pela Ditadura de Vargas, a de 64, o descaso e a discriminação que condena o negro. Mesmo “comunista” não sofreu tortura alguma. Bendito silêncio. Só agora sei o teu valor. Papai também sabia e por isso está são e salvo, só o tempo, arrancou-lhe alguns fios do cabelo. Construiu uma, duas.. .treze vidas, calado, sem gritos, feito mineiro... Grande- homem. Silêncio majestoso. Acanhado, sem beijos, poucos abraços, alguns puxões de orelha, raríssimas palavras e os filhos foram dar na universidade, Quem diria que a infância perdida nas roças do Maranhão, fosse fazer tanto barulho no Pará.
Aprendi com ele, mas fui rebelde. Não consegui apanhar calada, não consegui deglutir as mágoas todas. E quando veio o casamento, fui forçada a aprender a lição. Aí descobri que papai estava certo. E precisei chorar pelos cantos, e aprendi a engolir o choro; a respeitar o chicote; a sofrer quando brigava, a não brigar quando sofria e a chorar quando colava. Depois, com a gravidez, de mulher me fiz um forte. Um castelo. No parto, chorei, gritei, exagerei, extravasei... Chamei pelo Pai do Céu. Nove meses, um grande esforço, a dor, o estouro, o rompimento, o medo tremendo, um gemido milagroso. Esforço de mãe. E com um berro ela, pequena, roxa, confirmou o milagre. E do grito fez-se a vida, a fome, carinho, cuidado. O choro tornou-se voz aos seis meses. Ela não disse “papa”, não disse “mama”, exclamou “sapo”, o anfíbio de plástico, o amigo inseparável na hora da babação.
E enquanto ela arranhava os primeiro sons, os meus já eram ecoados na pequena escolinha virando leite, carne, biscoito, danone, frauda descartável... a independência...a separação.
Sem a garganta, pensei, a vida é um tédio, a noite não passa, mas descobri que papai estava certíssimo quando dizia, nos poucos momentos em que falava, “Às vezes, é melhor ficar calado”. E descobri que talvez não seria tão ruim assim, que eu poderia sim me safar nas minhas limitações, poderia passar noites mergulhadas nos Machados, nos Bandeiras, Clarices, Raquéis. . .Poderia ser mestra em textos não- verbais, PHD em mímica. De fato, podemos extrair das coisas ruins algo de muito, muito bom.
E assim aprendi. Aprendi e descobri. Descobri que preciso agradecer um montão de gente que tem me ajudado, o patrão, os amigos... E que preciso dar mais atenção ao que minha filha fala, dizer que amo, que adoro, que agradeço, que estou feliz pelas oportunidades, pela confiança, pelo aprendizado. Falar, falar e falar... antes que a voz se cale para sempre, sem que dê tempo de falar a importância de cada amigo, cada aluno. A importância da vida, o poder das palavras, o dom divino da comunicação. Dizer bom dia, perguntar se está tudo bem, sorrir, dá um abraço.
A gente pode aprender tanta coisa com uma semana de virose, uma rouquidão intrusa...um minuto de silêncio. Eu, pelo menos, já sei o que faria se perdesse a voz: ESCREVERIA.

Texto escrito há seis anos.Resolvi publicar por causa do momento!!!

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