16 de janeiro de 2010

HÉLIO MARTINS: HOMEM DE PERSONALIDADE


Dia chegando. Beatas, comerciantes e padeiros vagam nas estreitas ruas da pequena cidade. Papai acordava a gente cedinho para buscar o pão no japonês e também para os afazeres da taberna. O dia mal amanhecia e eu era uma das poucas crianças que circundava por lá. Devagar, e ainda limpando os olhos, ouvia de longe a buzina do carro dele, um caminhãozinho branco de gaiola em ferro, onde os bois vinham tristes para o matadouro. O barulho dos pneus arranhavam o silêncio da Avenida Castelo Branco em frente à Igreja, ele passava apressado com a buzina gritante disputando o ruído com o mungido do gado vivo dentro do cercadinho da camioneta chorando pelo bovino já morto partido em quatro que vinha pendurado pelo lado de fora nuns ganchos de ferro...Era ele, seu Hélio Martins, marido da dona Albertina, professora e mãe da Thaisa, da Andreliza e do pequeno Júnior. Seu Hélio era um senhor baixinho, dona Albertina era mulher do tipo popozuda, mas pra ele, que tinha um caminhão, o exagero das formas da esposa não era problema, pelo contrário, o baixinho mostrava muito orgulho: não era à toa que os dois andavam de mãos dadas, mesmo com tantos anos de casados. Ele parecia fazer questão de mostrar que dava conta do recado. Leilão na Barraca, os dois estavam lá, passeio no Caeté e o casal se esbaldava a beber a sua cervejinha. Ainda lembro das viagens que fazíamos ao terreno do seu Idelbrando. Seu Hélio gostava de mim, eu era amiga da Thaisa desde pequenina, freqüentava a sua casa e comia altos churrascos por lá. Ele era homem exagerado e os almoços, principalmente aos domingos, aconteciam sempre na maior fartura - talvez porque ele fosse, na época, o açougueiro mais famoso da cidade. Bom, só sei que, quando a carne sobrava de um dia pro outro, o danado ordenava a festança e eu adorava. Recordo das vezes em que voltávamos da Florentina e parávamos na casa dele, na casa cumprida havia uma cozinha grande com um frizer onde as carnes ficavam congeladas pra não estragarem e a Thaisa fazia a farra conosco. Era uma felicidade só. Seu Hélio era um homem bom, honesto e conhecido. Foi preso injustamente por receptação de carne de gado roubado e a cidade ficou sem acreditar, todos sabiam de sua índole e personalidade. Pai exigente, tradicional, não admitia ser desrespeitado. Marido eficaz, era apaixonado e adorava fazer os divertimentos com a mulher. Filho do seu Elói e de dona Zefinha, ele, definitivamente, não pode ser esquecido. Personalidade luziense que deixou saudade para os que frequentavam a rua Magalhães Barata e sempre o encontrava com aquele sorriso largo e sínico. Baixinho arretado, tido como um homem influente e de boas economias, era gastador, adorava uma cerveja e depois do trabalho era ortodoxo no descanso da tarde. Seu açougue ficava próximo da sua casa, ali mesmo nos arredores da Praça da Matriz, e por isso todos o conhecia. Ele e suas tradições meio loucas: o varal de carne salgada, o tôco antigo onde ele cortava, no machado, o osso do gado, a balança de peso enferrujada, o guardanapo manchado de sangue sempre no ombro nu, pois não trabalhava de camisa nunca, os óculos indiscretos que usava, o jeito único de cuspir, forte, seco e mirante – às vezes cuspia na gente só de sacanagem. E ria zombando da meninada que passava por aquela calçada larga pintada de vermelho pelo sangue da carne. Um dia me deu uma surra por engano pensando que eu fosse a Thaisa, me viu de bobeira do outro lado da pista, mandou o sarrafo e depois pediu desculpa rindo da maneira como eu chorava... "Chora direito, menina, essa moleca não sabe nem chorar!!!”. Seu Hélio era uma piada! Hoje, ele não está aqui entre nós mas gostaria de dizer que eu só conclui que já tinha aprendido a chorar, quando soube que ele havia morrido. Lembro do dia daquela triste notícia. Um acidente, uma fatalidade, sei lá o quê, mas o 47 vestiu luto naquela manhã. Não sabemos ao certo o que ouve com o carro, nem com o motorista quando na perda da direção do automóvel, mas aquele abismo às margens da BR 316, tirou da gente um grande homem, um grande pai, um grande cidadão, um coração luziense. Quem dirigia a parati era o Pedro taxista, que distraído, admirava-se do amigo que contava os bolos de notas organizando-as em ligas amarelas para o depósito bancário. Descuido, imprudência, velocidade...não interessa, importa que entre notas de cem, abelhas e troncos de árvores, o 47 perdeu um morador ilustre. Seu Hélio: Hélio Rubens Martins da Silva, 37 anos e muitas boas lembranças. Saiba, o senhor, seu Hélio, faz falta. Falta para os que sorriram e viveram aqueles bons momentos de conversas e gargalhadas. Falta aos seus filhos que, sem dúvida, nunca mais foram os mesmos desde a sua partida. Falta àquela rua, àquela casa que até hoje ainda tem a sua cara. Falta à sua esposa que teve sozinha que segurar toda a barra e as dificuldades de prosseguir só. Falta a essa cidade que hoje carece de pessoas assim, exatamente como o senhor: cheia de graça, de audácia, exemplo e muita, muita coragem. Fique em paz, esteja com Deus e que a memória desse povo conserve viva a sua imagem, pois o senhor, seu Hélio, realmente, merece!

Um comentário:

Thaisa disse...

Oh FIlha...essa é a história do meu pai...você narrando e eu relembrando os nossos lindos momentos. Obrigada por seu carinho, respeito e consideração!!!